segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Segredos e medos que o medo de dirigir pode revelar

Texto: Mirna Bom Sucesso
Às vezes, a vida parece estacionar no subsolo da experiência humana. E acordar, e levantar, e dormir é um guiar eterno em estrada sem curva. Madalena recebeu a maior oportunidade profissional de sua vida: gerenciar uma equipe de representantes de uma indústria de cosmético. O salário quadriplicaria. Hospedagem seis estrelas. Um carro importado zerinho para viajar de uma região a outra semanalmente. Era felicidade o que ela deveria sentir; em vez disso, sentiu o peito esmagado por um caminhão. Teve de dizer “não, obrigada. Não sei dirigir”.O gerente de Madalena riu. “Ok, damos um mês para você tirar sua habilitação”. Ele não estava entendendo. Dirigir era algo que ela nunca faria na vida. Não sentia que tinha nascido para a coisa. Diante de um volante, seus braços amoleciam, ficavam sem circulação.Já sofreu acidente de carro, Madalena? Não. Já viu alguém morrer no carro, Madalena? Não. Já foi atropelada, Madalena? Não. Então, Madalena, o seu medo é de assumir a direção da sua vida. Tire férias e pense. Procure um psiquiatra, terapeuta, macumbeiro, curandeiro, sei lá. Se vira! Volte com a habilitação.“Medo de assumir a direção da sua vida”. Todo mundo diz isso para quem tem medo de dirigir. Clichê. Psicanálise selvagem. O medo de Madalena era uma espinha interna, dessas que se anunciam apenas em vermelhidão. Agora, acordara dolorida e sem sinal de que eclodiria. Apertou. Doeu. Nada saía dali.O rapaz que acelerou sobre o corpo do frentista sabe dirigir. O rapaz que se suicidou na contramão sabia dirigir. O outro que atropelou não sei quantos na calçada sabe dirigir. Sabiam assumir a direção da própria vida? Não podia ser essa a lógica.Madalena procurou o psiquiatra, o terapeuta, o macumbeiro, o curandeiro. Não era mais pelo emprego, era pela espinha que não parava de doer.Pode ter sido um tratamento ou todos ao mesmo tempo. Um dia, simplesmente ela se lembrou... Se lembrou como se nunca tivesse esquecido. Como poderia ter esquecido aquilo? Quando criança, lá pelos seis ou sete anos, Madalena adorava carros. Especialmente o carro do tio, aquela máquina mágica que a levava ao encontro dos primos nas férias. Pedia ao tio para ficar dentro dele, na garagem. Sonhava em guiar aquela coisa o mais rápido possível.Era anos 80, ok. O tio deixava. Mas o primo mais velho, não. Ele dizia que sem ele era perigoso. Agora, a espinha latejava. De súbito, ela viu, ela estava sobre o colo do primo, subjugada pelo prazer dele.Não sabe ao certo quantas vezes foram, que ameaças ouviu para manter o silêncio por tantos anos. Recordava-se, porém, que, numa das tentativas de fuga, ele pressionou seus braços com tanta força que dedos vermelhos afloraram na pele branca. Era uma lembrança sem airbag. Esborrachou-se nela. Da espinha, agora, só sangue.Madalena tem feito o exercício de se sentar ao volante e se conscientizar de que só existem ele e ela. Não é fácil. É como acelerar na beira do abismo. Vez ou outra, tempestades de recordações a fazem pisar no freio. Mas, agora, ela sabe o motivo. Assumir a direção da vida talvez seja estar consciente das razões que nos fazem dizer sim ou não. Ela estava disposta a dizer sim ao prazer de guiar.E você? Jogue uma pedra no poço do seu medo de dirigir. Pode ser que o trânsito, a violência ou a insegurança a faça tilintar logo na superfície rasa. Mas, se o eco for mudo, aproxime-se, silencie e escute o segredo que ele pode revelar. Só podemos curar o que conhecemos.

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